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Conceição Evaristo

21/09/2022 13:33 - por Tiago Vargas

Conceição Evaristo nasceu em 29 de dezembro de 1946, numa favela da zona sul de Belo Horizonte, Minas Gerais. Conciliou os estudos com o trabalho de empregada doméstica. Graduou-se em letras. É Mestre em Literatura Brasileira pela PUC/RJ e doutora  em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Publicou seu primeiro poema em 1990 no 13 º volume dos cadernos negros, editado pelo grupo Quilombhoje, de São Paulo. É autora de Ponciá Vicencio (2003), Olhos d'água (2014, vencedor do Prêmio Jabuti) e Histórias de leves enganos e parencenças (2016) entre outros... Conceição traz em sua literatura uma profunda reflexão acerca das questões  de raça e gênero; em seu texto insurgente revela o preconceito e desigualdade velada tão intrínseca em nossa sociedade. Escritora contemporânea. De estilo fluído. Consciente. Reescreve sua história a partir de suas vivências. Nome substancial, necessário e relevante na literatura recente.

Da calma e do silêncio
Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.
Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.
Conceição Evaristo

Só de sol a minha casa
A Adélia Prado, com licença, que também sou mineira
Durante muito tempo,
também tive um sol
a inundar a nossa casa inteira,
tal a pequenez do cômodo.
Pelas fendas do machucado zinco,
folhas escaldantes de nosso teto,
invasivos raios confrontavam
pontos de mil quentura.
E Jorrantes jatos de fogo
Abrasavam o vazio
de um estorricado chão .
Em dias de maior ardência,
minha mãe alquebrava
seu milenar e profundo cansaço
no recorte disforme
de um buraco - janela sem janela –
acontecido no centro de uma frágil parede.
(rota de fuga de uma presa a inventar a extensão de um prado)
Eu não sei por que, ela olhava o tempo
e nos chamava para perscrutar
em que lugar morava a esperança.
Olhávamos.
Salvou-nos a obediência.
Conceição Evaristo

Carolina na hora da estrela
No meio da noite
Carolina corta a hora da estrela.
Nos laços de sua família um nó
- a fome.
José Carlos masca chicletes.
No aniversário, Vera Eunice desiste
do par de sapatos,
quer um par de óculos escuros.
João José na via-crúcis do corpo,
um sopro de vida no instante-quase
a extinguir seus jovens dias.
E lá se vai Carolina
com os olhos fundos,
macabeando todas as dores do mundo...
Na hora da estrela, Clarice nem sabe
que uma mulher cata letras e escreve
“ De dia tenho sono e de noite poesia”
Conceição Evaristo

Vozes-mulheres
A voz de minha bisavó ecoou
criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
De uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
No fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome.
Conceição Evaristo

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