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Mário Faustino

26/10/2022 09:07 - por Tiago Vargas

Mário Faustino dos Santos e Silva nasceu em Teresina no Piauí em 1930. Poeta, jornalista, crítico literário, ensaísta e tradutor. Intelectual brilhante porém pouco conhecido do grande público leitor. Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud e Paul Verlaine são apenas alguns  autores que foram traduzidos por Faustino. O homem e sua hora de 1955 é sua grande obra; são vinte e dois poemas vestidos de uma complexidade rítmica e métrica e de formas poéticas de uma propensão inata para desarticular as palavras e explorar de modo sui-generis seu potencial sonoro-semântico. Poeta-crítico, aliou sua criação literária a intensa reflexão sobre a tradição e o fazer poético.  Ezra Pound, Dylan Thomas e Jorge de Lima foram suas principais referências na escrita. Autor de vanguarda. Mário Faustino. Poeta inventivo, elegante. Metafísico. Atemporal.

Soneto 
Necessito de um ser, um ser humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler
À luz da lua que ressarce o dano
Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.
Necessito de um ser, de seu abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um dormente e lasso
Contra meu ser arfante:
necessito de um ser sendo a meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.
Mário Faustino

Legenda
No princípio
Houve treva bastante para o espírito
Mover-se livremente à flor do sol
Oculto em pleno dia.
No princípio
Houve silêncio até para escutar-se
O germinar atroz de uma desgraça
Maquinada no horror do meio-dia.
E havia, no princípio,
Tão vegetal quietude, tão severa
Que se estendia a queda de uma lágrima
Das frondes dos heróis de cada dia.
Havia então mais sombra em nossa via.
Menos fragor na farsa da agonia,
Mais êxtase no mito da alegria.
Agora o bandoleiro brada e atira
Jorros de luz na fuga de meu dia —
e mudo sou para contar-te, amigo,
O reino, a lenda, a glória desse dia.

Breve elegia
Só ardem neste sono
os círios da memória e do desejo.
E turvos
na memória revolta são teus gestos –
os únicos repletos de perdão.
É preciso esquecer
tanto amar, tanta amarga
expiação de tudo que guardamos
por não sabermos dar.
E obscura
pelas vagas do leito                                 
- tua sombra –
nenhuma outra é digna deste abraço.
Pudesse eu divagar
pelos bosques teu reino, mergulhar
contigo em tua fonte, ou ascender
ao teu éter contigo, ao teu mistério ...
mas não há via larga rumo à noite.
Então, luz após luz remota, um sol atroz
atira-me do sonho aos recifes
reais donde diviso tua fuga:
Jamais a madrugada traz nos braços
relíquias de uma lua que adoramos.

Vida toda linguagem
Vida toda linguagem,
frase perfeita sempre, talvez verso,
geralmente sem qualquer adjetivo,
coluna sem ornamento, geralmente partida.
Vida toda linguagem,
há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome
aqui, ali, assegurando a perfeição
eterna do período, talvez verso,
talvez interjetivo, verso, verso.
Vida toda linguagem,
Feto sugando em língua compassiva
o sangue que criança espalhará  − oh metáfora ativa!
leite jorrado em fonte adolescente,
sêmen de homens maduros, verbo, verbo.
Vida toda linguagem,
bem o conhecem velhos que repetem,
contra negras janelas, cintilantes imagens
que lhes estrelam turvas trajetórias.
Vida toda linguagem −
como todos sabemos
conjugar esses verbos, nomear
esses nomes:
amar, fazer, destruir
homem, mulher e besta, diabo e anjo
e deus talvez, e nada.
Vida toda linguagem
vida sempre perfeita,
imperfeitos somente os vocábulos mortos
com que um homem jovem, nos terraços do inverno
[contra a chuva,
tenta fazê-la eterna −  como se lhe faltasse
outra, imortal sintaxe
à vida que é perfeita
língua
eterna.
Mário Faustino

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