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Lúcio Cardoso, o poeta da inquietudo existencial

03/01/2024 09:35 - por Tiago Vargas

Nasceu em Curvelo, Minas Gerais. Compôs uma vasta produção ficcional, entre romances, contos, poemas, peças teatrais, roteiros e diários. Boêmio e homossexual, foi grande amigo de Clarice Lispector, que se dizia apaixonada por ele. Em 1962, sofreu um derrame cerebral que paralisou parcialmente o lado direito de seu corpo. Não podendo mais escrever, passou a dedicar-se à pintura.

É autor dos livros, Maleita, Salgueiro, A luz no subsolo e Dias Perdidos. No entanto, sua obra-prima foi Crônica da casa assassinada. Seu estilo de produção escrita transitou entre a estética naturalista e as vanguardas europeias, principalmente o expressionismo e o surrealismo. Em suas obras, a tensão é voltada “para dentro’’, traçando assim, totalidades existenciais e não propriamente enredos ficcionais claros e bem determinados. 

A poesia foi a primeira forma de expressão literária do autor, caracterizado pela inquietude existencial e pelo teor melancólico e transcendente. 

Poema do Ferro e do Sangue
Esqueceram os campos revolvidos
onde vegetam perdidos
os ossos obscuros
calcinados
de dez milhões de mortos.
Esqueceram as cruzes improvisadas
erguendo para o alto
preces de galhos retorcidos.
E esqueceram o rumor das granadas
revolvendo a terra e os vivos
devorando os mortos
destruindo.

Único Poema de Amor
tudo tão calmo
a vida dormindo
como agora que tombasse sem murmúrio
na planície do meu pensamento …
folhas mortas que não voam,
pássaros imóveis que não cantam,
água parada que não corre …
e teu corpo como um lírio sobre a terra,
e a terra muda impregnada de perfume,
teus olhos grandes como flores noturnas,
flores que se abrem na doçura do silêncio
e minha sombra como uma nuvem perdida
debruçada sobre teus cabelos imóveis
que boiam na água da planície…

Receita de Homem
Depois deve ser alto,
sem lembrar o frio estilo da palmeira.
Moreno sem excesso para que se encontre
tons de sol de agosto em seus cabelos.
E nem louro demais para que, de repente
no olhar cintile algo da cigana pátria adormecida.
E que tenha mãos grandes, para demorados carinhos
e adeuses que se retardem ao peso do próprio gesto.
Pés grandes, também, por que não,
para que os regressos sejam breves
e haja resistência para as conjuntas caminhadas.
Os olhos falem, falem sempre, falem
de amor, de ciúme, de morte ou traição.
Mas que falem. Porque o homem sem a música dos olhos
é como sepultura exposta ao sol do meio-dia.
E que o riso relembre um pouco da infância,
para que se tenha, no fervor do beijo,
uma memória de pitanga e amora esmagadas
Ah, o corpo! Sucedam alvoradas ao longo do tórax gentil,
e escureça a penugem até o sexo velado.
(Mas não definitivamente.)
E o seu passo lembre a dança, mas com firmeza,
e o seu rastro fale de perfume, sem perfume
e escorram pausados rios em seus flancos hieráticos.
E que ele cante, sem cantar
por toda a sua humana contextura,
para que também em torno dele as coisas cantem,
quando, como o primeiro homem,
nu ele se erguer defronte ao mar.


Clarice Lispector e Lúcio Cardoso


Livro mais relevante

Poema
Que sei fazer, meu Deus, senão amar?
As tardes de estio, o vento nos caminhos,
a ausência.
Sinto que tudo não será senão um sonho
a dilacerar no tempo imóvel.
O vento nas folhas, o vento no rio,
o vento arrastando as nuvens indefesas.
O teu olhar, os teus cabelos que rolam,
o meu amor que não se acaba.
Que sei fazer, meu Deus, senão sofrer?

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