Blog da Poesia

Natália Agra

28/05/2025 10:02 - por Tiago Vargas tiagovargas.uab@gmail.com

Natália Agra nasceu em1987. É poeta, editora, jornalista e tradutora. Nasceu em Maceió (AL) e vive em São Paulo. Publicou os livros de poesia De repente a chuva (2017) e Noite de São João (2020), ambos pela editora Corsário-Satã. É autora do livro infantil Os balões de Nise (2019). 

Escritora contemporânea. Silêncio e temas cotidianos são frequentes em sua produção literária. 

rigor
de uma só vez empilhar
cuidadosamente
todas as mãos frias
de uma só vez chorar

fogo-fátuo
velei teu corpo por tanto tempo que ainda bate em mim o pó secreto alheio àquela noite. por doze horas resistimos à ideia de que você não mais estaria ali. e esse pó que se reverte em torpor me faz, de novo, chorar com toda a clareza que só a porta da separação nos inflama – as lágrimas descem como vitrais, como colmeias, como elefantes. ergo os olhos para você na parede, sem que teu retrato exista, de fato. o que existe é a memória de algo desbotando, que escorre feito pigmento que contorna algum rosto que mora sempre no que nos ancora. ontem tentava tocar tua voz e fui mais longe, tentei tocar também a voz de minha avó e de meu avô (que morreram tanto tempo antes). não consegui. de meu vô, guardo o fanho da língua – silencioso, guardava, no sereno, a densa e forte fumaça do cigarro de palha (difícil verter qualquer palavra para além do necessário – meu avô, um deserto). de minha vó, quase toda a gargalhada, o passeio pelas flores que ela, em sobejo, cuidava – quase tanto ela mesma uma rosa (era fácil – minha avó, um jardim). pensei em minha mãe e em meu pai, que nunca ouviram de minha irmã a palavra mãe ou pai. pensei o quão cruel foi não poder ouvir o que esperaram por muito tempo e imagino como foi ainda mais difícil ouvir de mim, que, por ironia, guardei e falei suas primeiras palavras. pouco, muito pouco esbarrei na voz que estampava no retrato, uma vida inteira malograda. estou perdendo tua voz. a voz exata, intacta. a voz que, momentos antes da tua morte, já parecia tão diferente da que eu conhecia. às vezes, ela reaparece por um milésimo de segundo em minha mente, para depois ocultar-se novamente. tenho um filme teu, no qual tua voz está lá – estala, expressiva, melancólica, cansada de perseguir os mesmos planos. estala. está lá, mas sou eu que não consigo atravessar a finíssima película da voz que já não existe. deixo-a por lá, perdida nas nuvens do computador, em sua finitude maquinal. a ideia do esquecimento apavora. diante disso tentamos nos proteger de alguma forma nas reminiscências, mesmo que o toque esteja a quilômetros do corpo, o hipocampo espalha suas longas notas que ficam planando, registrando cada instante. o hipocampo e sua orquestra afinadíssima. cada nota uma lembrança esboçando o espaço numa música antiga. estamos todos inexistindo nesta fábula inquietante pelo deserto. reviver traz de volta a imutável condição de ser fonte e ser ferida. é preciso rememorar o segundo final na tentativa de abraçar o que está submerso. dedico várias horas dos dias no diálogo áfono com cada um dos meus mortos. fantasmas presos eternamente no assoalho da memória. se pudesse, engoliria a voz que entra pela porta sem nenhum contraste. o espaço e o tempo presentes no canto da gaivota perdida. para sempre. um rio em suas ruínas, a gaivota – um pequenino ser com a sua morte dentro. sou eu, também, pequena morrendo a cada passo? percebo, agora, que, durante aquelas dozes horas em que observara teu último pesadelo, naquele labirinto insuperável, onde, se observasse bem, dava para vê-lo correndo, em busca da saída mais próxima, através do ouvido acerado que escutava de mim o desespero: não consigo segurar minhas lágrimas do mesmo jeito que você. e você já ouvia o pássaro que ninguém mais ouvia. o pássaro indiferente a todos os outros – antípoda aos pássaros da minha infância, que você tão pacientemente aguardava os primeiros sons deslizando por tantas horas incompreendidas. ouvimos tantas vezes o mesmo pássaro, não é, pai? e teve que ser eu a fechar a última porta entre nós. parece certo dizer, por repetidas vezes, que há em toda morte um pouco da nossa própria morte. um duplo terrível. um espelho fantasmal. e real. a gente contempla, na figura do outro (estática), o início do nosso fim. hoje, passados tantos anos, aquelas horas derradeiras e por horas infinitas, em que guardei do teu rosto as últimas folhas, reflito sobre o rio que agora nos distancia: somos meu pai e eu: um rio imenso, que nos atravessa.

repouso
cerejeira, companheira do vento
os frutos de sangue
não tocam mais as nuvens

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