Blog Da Poesia

André de Moura Carvalho

13/07/2022 08:35 - por Tiago Vargas

André de Moura Carvalho nasceu em Cachoeira do Sul, no dia 9 de setembro de 1985. Virginiano e perfeccionista. Características que refletem em sua escrita. Perpassam seu texto. O vencedor do XXV Prêmio Paulo Salzano Vieira da Cunha de Poemas tem como referência a expressão artística em um sentido mais amplo. Da forma estética à criação.  Da pintura à literatura. De Vang Gogh a Saramago. André é um poeta de linguagem fluída, articulada. Persuasivo em sua essência. Inteligente. Sua poesia é metafórica, de forte impacto emocional, densa, pungente.  Interna como se destravasse diálogos próprios. Espelho autobiográfico. Intrínseca. Orgânica. Solomon, Elis Regina, Platão e Clarice Lispector completam o mosaico das influências do vencedor da edição deste ano.  Eis, alguns de seus poemas...


Poema III
Gotas de tinta em uma tela branca 
O sentimento incompreendido em uma expressão incompreendida que seguirá incompreendida por mentes miúdas no amiúde da seca imaginativa do embotamento emocional.
Linhas na tela branca com limites indefinidos de uma alma desde cedo incompreendida 
É a vida definida por limites subjetivos e levianamente tendenciosos a costumes morosos de tradições impetuosas e impessoais.
Pontos numa tela em preto e branco e a imagem de um adulto assustado e adulterado para além do seu eu. Na essência, uma essência de lembranças cuidadosamente categorizadas e veladamente politizadas. 
Manchas num quadro branco que ora era branco e agora parece confuso e indefinido, com cores que mais vão para preto e azul. A indefinição são camadas e camadas de um emaranhado mal resolvido de ruído e rejeição.

Poema V
Um grito no silêncio
O som da lua
A catástrofe da cocaína
E a dor 
Horas que findam
Mãos que puxam 
Uma caixa no chão 
E a agonia
Olhos vermelhos 
Tremores coléricos 
Inconformidades incoerentes 
E o delirium 
Olhos fechados 
Sonhos com ratos
Assombrações nos teus pés 
E o distúrbio 
A insignificância 
A negligência 
O canto dos olhos 
E o vazio 
A raiva sociável  
Os maldizeres 
O dedo no gatilho
E o ódio 
A arte de ver o bom
Cores no rosto
Um grito de alegria 
E a dopamina.

Poema VI
Sinto um peso no ar 
Na garganta, volta como um fel de uma má digestão de um chá de flores e frutas há muito deixado de lado
No cinzeiro, as cinzas se unem e juntas se revelam como aquelas borras de café que se dizem lidas 
Há raiva e desamor e amarguras 
Das pessoas que foram amadas e não amaram, das pessoas que deveriam amar e não amaram, daquelas que amaram e não foram amadas 
Do passado, dos erros, das desventuras e das escolhas mal feitas 
Do tempo perdido, das palavras bem ditas não ditas
Dos abraços não dados e dos sentimentos reprimidos
Da felicidade alheia que deliberadamente se absteve
É curioso usar um poema para expressar um sentimento tão amargo e improdutivo
Normalmente o poema é algo leve: melancólico, talvez, matutino, talvez
Aqui ele está num fundo preto com palavras brancas, num bloco de notas de um telefone, numa noite fria e solitário de insônia
As palavras juntas são como uma película de prata atrás de um vidro, forçando-me a ver e a ser
Elas caem do meu raciocínio para o contexto, como uma sequência autônoma que expressa uma subconsciência, tal como um diálogo em um momento de fúria
Posso então entender e balizar minha constância ou inconstância sanitária e mental 
Não falo de como romantizaram o amor
Tampouco sei se isso é um poema ou uma junção de palavras sem categoria 
Porque o poema normalmente é rimado, todo arranjado e poético 
Mas aqui não tenho intenção de parecer normal ou categórico, afinal, se há loucura em mim, ela está prevista nestas palavras e sai visceralmente
Ser feliz não é algo fluido, não é uma sucessão de dias felizes 
Ser feliz é considerar a infelicidade e selar um tratado de boa vizinhança
“Vamos construir um muro e delimitar campos, categórica e respeitosamente” - é o proposto
Há décadas estamos tentando 
Ainda há e - suponho - sempre haverá - cláusulas incompreendidas, tal como um dialeto técnico se apresenta para um leigo
A cada dia se descobre uma palavra nesse texto, que se é possível ler, mas difícil entender 
Aqui, peço desculpas sinceras pela falta de amabilidade ou doçura
Entenda-me como alguém que assume suas incoerências (eufemismo) como uma fragilidade
Os motivos que as causam são ainda mais débeis 
Vive-se com amarguras e desconsiderá-las não me é facultado
Elas são o que se é, quer queira ou não 
Toca-me sofrer ou não
Não há terceiros culpados, nem segundos: Somente eu
Hoje entendo melhor
Deixe-me ajudar, caso lhe seja de difícil compreensão:
A raiva surge de um submundo pesado não elaborado visceral (1); 
Assim como em matemática, pode-se desfazê-la em um exponencial simples e transformá-la em mágoa (2);
Com a mágoa é mais fácil - o número é simples - primo ou nao (3);
Aí se decide incrementá-la com tristeza ou amargura ou decorá-la novamente com mais raiva (4);
Viu? é simples!
No mundo real, a vida é assim: uma constante inconstância
“Just keep driving” é a música que vem à cabeça enquanto escrevo.

Poema IV
Eu me resumo à insignificância de ser
Os grandes sobem como uma curva geométrica em um gráfico de duas métricas
A minha cabe em uma linha de caligrafia, seriamente tendenciosa à queda
Comem cereal matinal com doses de elegância e sais minerais do mar de Poseidon
Se for de letrinhas, há de vir já com análise sintática e predicado classificado
Se o sujeito for indefinido, há instruções para encontrar um definido em inglês
Insignificância é não significar, não é não existir
Você existe, mas ninguém vê
Aliás, a aparência de alguém que não significa, tampouco importa, naturalmente
Os espelhos dos grandes sempre respondem: é você, meu rei, minha rainha
Quando há dúvidas, olham-se novamente, afinal, cada um é único 
O reflexo só é idêntico se o espelho for mágico de cristal, não mágico comum
O espelho, portanto, há de ter uma função gratificada para os grandes
Já, para mim, basta cereal com todas as letras e leite de vaca
E sabe-se lá o que mais um dia insignificante para um insignificante pode aprontar
Veja bem: É aprontar, não apresentar
A não ser que quando você caia, alguém o veja
Bem, aí será uma apresentação, que de tão natural, dispensa o ensaio e sai irreparável
Mas o dia de um insignificante é uma sucessão de horas sem sentido
Que tanto faz se amanhece ou escurece 
Poderia até fazer uma pausa de anos no meio de um dia
Um buraco sem fim no meio do nada: o habitual vazio
E como em dimensões paralelas, se vive 
Não é matrix e nem precisa
Setembro que o diga.

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