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Paulo Leminski e Toda Poesia - Breve e sucinta análise de alguns poemas

13/03/2024 09:45 - por Tiago Vargas

Paulo Leminski foi um grande poeta brasileiro que teve a sua obra reeditada em 2013 sob o título Toda poesia. A partir de então os seus versos viraram febre e alcançaram um público ainda mais amplo.

No entanto, é de se espantar que uma antologia de poesia tenha liderado os rankings de mais vendidos chegando a desbancar best sellers como 50 tons de cinza. 

Mas fato é que a poesia cotidiana e acessível de Leminski cativou não só o leitor habituado a lírica como também seduziu quem nunca havia sido grande fã de versos.

Eis alguns dos poemas extraídos da antologia e com uma breve e sucinta análise.

CONTRANARCISO 
em mim
eu vejo
o outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente centenas
o outro
que há em mim é você
você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós.

O belíssimo poema Contranarciso usa uma linguagem coloquial e uma construção simples para narrar a mescla de identidades e a fusão que estabelecemos com o outro.

Lemos nos versos ao mesmo tempo uma inquietação por não sermos únicos, fechados e encerrados, mas também a alegria de partilharmos com o outro, de celebrarmos a diferença, deglutindo aquilo que não somos e nos oferecendo para a troca.

É comum na poética de Leminski essa comunhão com o ser humano que é diferente de nós e a celebração do enriquecimento que essa diferença proporciona.

Riso para Gil
teu riso
reflete no teu canto rima rica
raio de sol
em dente de ouro
“everything is gonna be alright” teu riso
diz sim
teu riso
satisfaz
enquanto o sol
que imita teu riso
não sai

Em sua poesia Leminski celebra grandes nomes da cultura brasileira como, por exemplo, o cantor e compositor Gilberto Gil. Além de Gil, o poeta cita em seus versos Jorge Benjor e Djavan e retoma outros nomes especialmente da cultura negra e baiana.

No poema acima o eu-lírico sublinha o inigualável sorriso de Gil, que de tão expansivo parece transbordar para o seu canto. A meio do poema ele chega a citar um trecho “everything is gonna be alright” (tudo irá ficar bem) da música Three little birds, de Bob Marley, eternizada na voz de Gilberto Gil.

Bem no fundo
No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.

Publicado no livro Distraídos venceremos, o poema acima é capaz de provocar no leitor uma identificação praticamente imediata. Quem afinal nunca desejou ver os seus problemas resolvidos por decreto?

Com uma linguagem acessível e cotidiana, o poema se constrói como uma espécie de conversa íntima, basta reparar como trejeitos típicos da oralidade são reproduzidos nos versos (a repetição inicial usada para dar ênfase é um bom exemplo de marca oral).

É interessante perceber também como o eu-lírico se coloca ao lado do leitor e passa a falar na primeira pessoa do plural se identificando com ele ("a gente gostaria de ver nossos problemas").

O final do poema é marcado por um traço de humor e ironia. Quando achamos que os problemas foram todos embora resolvidos por decreto vemos que eles retornam, com descendência, provando que é impossível extirpar o mal de uma só vez.

OUTROS POEMAS:
Não discuto

não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino

Sintonia para pressa e presságio
Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Soo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.
Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.

Sobre a publicação de Toda poesia
Lançado em 2013 pela editora Companhia das Letras, a antologia toda poesia pretendia reunir os trabalhos realizados por Paulo Leminski entre 1944 e 1989.

A edição não se resumiu a uma mera coletânea de poemas esparsos até então publicados em livros diversos. Toda poesia contou com a inclusão de comentários críticos - vale sublinhar a apresentação da poeta Alice Ruiz e o trabalho primoroso de José Miguel Wisnik - e depoimentos sobre Leminski e sobre a sua obra.

O mérito da coletânea foi também trazer ao grande público poemas que se encontravam fora de circulação há anos. Algumas publicações de Leminski foram praticamente artesanais e com tiragem curta, o que dificultava o alcance do leitor.

 

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