Blog da Poesia
A poesia fotográfica de Angélica de Freitas
Angélica de Freitas é uma das mais destacadas vozes da poesia brasileira contemporâneo. Nascida em Pelotas, em 1973 é, por formação Jornalista e tradutora. Publicou dois volumes do gênero, Rilke Shake (2007) e O útero é do tamanho de um punho (2012); este vencedor do Prêmio de melhor livro de poesia em 2012 concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Escreveu também o romance Guadalupe: Uma Roadtrip fantástica. Escritora sagaz.
Inteligente sem ser prepotente. De linguagem crua, simples. Humor e intertextualidade numa síntese perfeita. "São tomates e cebolas que nos sustentam, ervilhas e cenouras... Ah! Shakespeare é muito bom! Mas e beterrabas, chicória e agrião? Um modo não convencional de composição, inerente, sem a submissão do politicamente correto. Angélica de Freitas afasta-se com premência dos clichês óbvios e dos trocadilhos duvidosos.
Suas temáticas se pautam na insignificância e aleteoridade do cotidiano, naquilo que é recorrente, vezeiro e usual. (consegue criar em sua escrita imagens a partir de elementos simples). Versátil, perceptiva e invulgar. A poesia do instante. Do olhar fotográfico.
Por: Tiago Vargas

DENTADURA perfeita, ouve-me bem:
não chegarás a lugar algum.
são tomates e cebolas que nos sustentam,
e ervilhas e cenouras, dentadura perfeita.
ah, sim, shakespeare é muito bom,
mas e beterrabas, chicória e agrião?
e arroz, couve e feijão?
dentinhos lindos, o boi que comes
ontem pastava no campo. e te queixaste
que a carne estava dura demais.
dura demais é a vida, dentadura perfeita.
mas come, come tudo que puderes,
e esquece este papo,
e me enfia os talheres.



Meu propósito é morrer nalgum boteco,
Para que eu tenha vinho perto da boca.
Assim os anjos cantarão bem bonachos:
"Que Deus tenha piedade desse bêbado."
dó
ré
mi
eu penso em béla bártok
eu penso em rita lee
eu penso no stradivarius
e nos vários empregos
que tive
pra chegar aqui
e agora a turbina falha
e agora a cabine se parte em duas
e agora as tralhas todas caem dos compartimentos
e eu despenco junto
lindo e pálido minha cabeleira negra
meu violino contra o peito
o sujeito ali da frente reza
eu só penso
dó
ré
mi
eu penso em stravinski
e nas barbas do klaus kinski
e no nariz do karabtchevsky
e num poema do joseph brodsky
que uma vez eu li
senhoras intactas, afrouxem os cintos
que o chão é lindo & já vem vindo
one
two
three

February mon amour
janeiro não disse a que veio
mas fevereiro bateu na porta
e prometeu altas coisas
'como o carnaval', ele disse.
fevereiro é baixinho,
tem 1,60 m e usa costeletas
faria melhor propaganda
do festiva) de glastonbury.)
pisquei ligeira nas almofadas:
'nem tô, fevereiro
abandonei o calendário'.
'você é um saco', ele disse
e foi cheirar no banheiro.
família vende tudo
família vende tudo
um avô com muito uso
um limoeiro
um cachorro cego de um olho
família vende tudo
por bem pouco dinheiro
um sofá de três lugares
três molduras circulares
família vende tudo
um pai engravatado
depois desempregado
e uma mãe cada vez mais gorda
do seu lado
família vende tudo
um número de telefone
tantas vezes cortado
um carrinho de supermercado
família vende tudo
uma empregada batista
uma prima surrealista
uma ascendência italiana & golpista
família vende tudo
trinta carcaças de peru (do natal)
e a fitinha que amarraram no pé do júnior
no hospital
família vende tudo
as crianças se formaram
o pai faliu
deve grana para o banco do brasil
vai ser uma grande desova
a casa era do avô
mas o avô tá com o pé na cova
família vende tudo
então já viu
no fim dá quinhentos contos
pra cada um
o júnior vai reformar a piscina
o pai vai abrir um negócio escuso
e pagar a vila alpina
pro seu pai com muito uso
família vende tudo
preços abaixo do mercado
Rilke shake (2007)
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