Blog Da Poesia

Adelaide Ivánova

22/03/2023 10:10 - por Tiago Vargas

Adelaide Ivánova nasceu em 1982 em Recife, Pernambuco. Jornalista, tradutora, fotógrafa e poeta. Publicou Autonomia, Polaróides e O martelo, sua obra mais destacada. Seus escritos denotam um caráter urgente e retratam com desenvoltura uma invulgar coragem de abrir a caixa-preta dos temas não-ditos do universo feminino, entre os quais temas como a violência de gênero, da relação abusiva ao estupro. Sua fotografia suscita grafias que se alinham num percurso textual de inquietação e desconforto. Suas palavras são impulsivas e contundentes. Incontroláveis. Poesia crítica e autorreferencial que desbrava sentido e remonta significados. Concisa. Densa. Poemas em ebulição. Poesia para sangrar.
 

a sentença
I
pesa o decreto atroz, o fim certeiro.
pesa a sentença igual do juiz iníquo.
pesa como bigorna em minhas costas:
um homem foi hoje absolvido.
se a justiça é cega, só o xampu é neutro:
quão pouca diferença na inocência
do homem e das hienas. deixem-me em paz!
antes encham-me de vinho
a taça, quinda que bem ruim me deixe
ébria, console-me a alcoólica amnésia
e olvide o que de fato é tal sentença:
a mulher é a culpada...

Adelaide Ivánova

os anos noventa

você não estava lá nas coisas mais decisivas da minha vida
mas é assim mesmo: historiadores e arqueólogos
nunca estiveram presentes pra testemunhar
os levantes coletivos isso fazem os jornalistas e os
videntes você era apenas um menino quando
Kurt Cobain morreu nem poderia ainda saber o dano
que causaria sua existência de crisálida taurino e
primaveril quando meu destino cruzasse com o seu
e andaríamos de mãos dadas e suando verão afora
como se fosse o primeiro (e era) Berlim não era
tão esplendorosa quantos seus cachos Jakob, mas você
nunca soube o que foi ter 16 anos em recife na década
de noventa FHC presidente desemprego torneiras secas
filariose cólera sem vale do rio doce, mas tinha chico Science
abril pro rock o pior é agora não tem Berlim não tem recife
não tem chico Science não tem curt. Cobain nem você, mas FHC
ainda tem

o urubu

corpo de delito é
a expressão usada
para os casos de
infração em que há
no local marcas do evento
infracional
fazendo do corpo
um lugar e de delito
um adjetivo o exame
consiste em ver e ser
visto (festas também
consistem disso)

deitada numa maca com
quatro médicos ao meu redor
conversando ao mesmo tempo
sobre mucosas a greve
a falta de copos descartáveis
e decidindo diante de minhas pernas
abertas se depois do
expediente iam todos pro bar
o doutor do instituto
de medicina legal escreveu seu laudo
sem olhar pra minha cara
e falando no celular

eu e o doutor temos um corpo
e pelo menos outra coisa em comum:
adoramos telefonar e ir pro bar
o doutor é uma pessoa
lida com mortos e mulheres vivas
(que ele chama de peças)
com coisas.
 

o divórcio

apenas observando
você deixar passar
os anos
sem assinar
o e-mail.
“vim devolver o homem
assino onde”.
apenas observando
você deixar passar
os homens
mas com papel
assinado.
vim devolver os anos
volto pra onde?
apenas observando
você deixar passar
o contrato
sem cumprir
seu papel.
vim devolver a cidade
volto pro homem.
apenas observando
você deixar
a cidade
sem assinar
o homem.
vim inverter os papeis
e não volto.

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